Viagem de comboio


O comboio aproximava-se, finalmente, depois de três longas horas de espera, com os mosquitos à nossa volta, atraídos pela luz do candeeiro.

A nossa chegada à estação tinha sido um caos, para esquecer o mais depressa possível. Mas quem poderia esquecer?! O autocarro parou junto à estação. A noite estava escura e a iluminação escassa. Caminhámos em fila, arrastando as bagagens, uns atrás dos outros, incrédulos no que os nossos olhos nunca desejariam ter visto. O que se apresentava diante de nós era verdadeiramente diabólico. Todo o recinto que, aparentemente, em qualquer estação do mundo, seria o parque de estacionamento ou qualquer coisa que o valha, estava absolutamente repleto de corpos estendidos pelo chão. Era preciso abrir caminho e andar com muito cuidado para não passar por cima de ninguém. Parecia um cemitério de corpos por enterrar. Horrível!

Porque estaria toda  aquela gente a dormir ou a descansar ao relento, alguns com um trapo qualquer debaixo deles, outros directamente no chão, em cima da terra, das pedras, do que quer que fosse o solo. Crianças, velhos, gente de todas as idades, que à medida que íamos passando, continuavam inertes, adormecidos no cansaço, anestesiados na pobreza, na fome, na miséria humana jamais vista. Outros, ainda tinham força para estender o braço e abrir a mão, numa tentativa de conseguir alguma coisa. Qualquer coisa. E nós avançando sem dó nem piedade, pelo menos na aparência, por entre aquela multidão anónima. Era mesmo muita miséria para uma noite só, sem hipótese de escolha.

Entrámos na estação propriamente dita, onde a cena continuava. Não havia um pedaço de chão livre. Era de cortar a respiração. Mulheres com crianças pequenas abraçadas a elas... ali, havia de tudo e isto estendia-se até à gare. Para qualquer lado que nos virássemos o panorama era sempre o mesmo. Eu queria mesmo era sair dali. Estar em qualquer outro sítio, menos ali. É sempre difícil encarar a realidade quando ela é dura demais e fugir é a solução. Temos esse direito, somos diferentes, somos "melhores"(!), mas eu sabia que depois daquilo, nunca mais seria a mesma, portanto, acabei por me entregar e perceber que "aquilo" era uma bênção. Era mais do que isso. Era um crescer e amadurecer. Acordar para a vida, com os olhos bem abertos de uma vez por todas. Com a alma inteiramente desperta por uma nova consciência. O encarar de um mundo que nada tinha de virtual, nem de sonho e muito menos de fantástico. Um mundo vivo e real, que me tornou mais forte do que qualquer outra coisa até então.

Entretanto, tínhamos acabado de saber que o comboio para Delhi estava atrasado, nada mais nada menos que nove horas. Estava tudo explicado. Apareceram então uns carregadores, porque era preciso subir dois enormes lances de escada, o equivalente a dois andares, para chegarmos à gare de onde partiria o nosso comboio. Acontece que os carregadores eram muito poucos e nós bastantes. Além disso, eles eram magríssimos, só pele e osso. Reconheciam-se pelas suas poucas vestes vermelho escarlate e uma trouxinha na cabeça para melhor equilibrarem a carga. Alguns levavam uma ou duas malas em cima da cabeça e outra em cada mão, se necessário. Era duro ver aquilo e tudo por meia dúzia de rupias... o que lhes quisessem dar. Fiquei tão incomodada com aquela situação, que o que me apeteceu foi dar-lhes na mesma o dinheiro e carregar eu mesma a bagagem. E foi o que fiz. Peguei na mala, enchi os pulmões e comecei a subir os degraus, com quanta energia tinha. Uma das moças do grupo seguiu o meu exemplo, fazendo o mesmo. Não que eu quisesse armar-me em heroína ou competir com eles, que isso era impossível e nada justo. Mas o esforço que aqueles subnutridos faziam era verdadeiramente inacreditável. Fizemos dois terços do percurso e parámos, com os guias a gritarem para esperarmos. Com efeito, estávamos no limite, mas logo vieram em nosso auxílio e então chegámos à gare. E por conta do atraso do outro comboio, tínhamos que aguardar cerca de duas ou três horas naquele suplício.

Era tarde. O sono, o cansaço, as emoções, os mosquitos... no meio disto tudo, o tempo passou e entrou na gare o comboio que estava há horas atrasadíssimo e então só se via gente a correr de todos os lados. Parecia que os "mortos" tinham ressuscitado. Num instante, toda aquela massa de gente que enchia o chão, ergueu-se, como se tivessem uma mola e acorreram em direcção às portas das diversas carruagens, que eu não tinha a menor ideia onde iam encaixar, dado que o comboio já de si estava cheio, com cabeças a sair pelas janelas. O facto, é que em pouco tempo desapareceram como que por milagre. Evaporaram-se e o comboio para Delhi seguia agora o seu destino.

Quanto a nós, já tínhamos esgotado todo o tipo de piadas, anedotas, todas as brincadeiras e todas as charadas, enquanto os repelentes tinham passado de mão em mão sem descanso, quando finalmente o nosso tão desejado comboio se vem aproximando. Pegámos nas nossas bagagens e seguimos os guias para a carruagem que eles nos indicavam. Aí começou outra confusão. Claro, queríamos entrar todos ao mesmo tempo. Depois, era o medo de deixar alguma coisa para trás. Algumas malas eram bastante pesadas para as fazermos subir nos degraus do comboio. A carruagem cama parecia que já estava cheia. Era sem dúvida mais uma novidade, naquela terra onde tudo era cheio de mistérios. E eu pensava comigo mesma, mas onde é que estou agora? Mais uma vez, será que estou acordada ou isto é um pesadelo? Contudo, à medida que avançávamos procurando os beliches vazios que nos estavam destinados, assistíamos a um novo panorama. Aquilo, ainda assim, não tinha nada a ver com as carruagens da frente, onde o povo ia todo apinhado. Mas não deixava de ser um espectáculo e tanto. Alguns dormiam, outros nem por isso. De qualquer modo, a lambança que fazíamos pelo corredor adiante, mais as bagagens e os comentários de algo que, para nós europeus, era absolutamente desconhecido, as pessoas que já lá estavam, dormindo tranquilamente, acordavam e davam uma olhada, levantando um pouco a cabeça, não tanto por indignação, mas por admiração. O que é isto? Estava tudo tranquilo e de repente aparece esta gente, fazendo um motim dos diabos. Cada um gritava para seu lado. Uma, que não tinha a mala; outra, que não tinha almofada; outra que não chegava lá acima; outra que não conseguia abrir o beliche, outra, que queria trocar para ficar com outra; outra que achava que não cabia e outra que tinha fobia... uma perfeita babilónia.

A carruagem era composta por um corredor pelo qual caminhávamos, tendo à nossa esquerda os compartimentos que eram divididos por seis beliches cada, três de um lado e três do outro, enquanto à nossa direita havia outra fila, na vertical, relativamente aos beliches dos compartimentos, pelo corredor fora. Assim, cada compartimento era composto exactamente por sete beliches. Quando nos distribuímos pelos compartimentos, calhou que o que me cabia já tinha um beliche preenchido, o último de um dos lados, bem como o que ficava na vertical, ou seja, no corredor. Portanto, entrámos no compartimento, cinco pessoas, das quais duas formavam um casal. O guia disse quem ficava onde, sendo que a minha companheira de quarto gritou que tinha que ficar em baixo, por não conseguir subir a escada. O casal ficou do lado esquerdo. Ela na cama de baixo e ele na do meio. No último ficou o guia indiano. Do outro lado estava um senhor indiano, no último, por baixo dele, no meio, eu e a Mina por baixo de mim. Entrámos todos ao mesmo tempo, com medo que os beliches fugissem, porque estávamos exaustos e queríamos dormir. No do corredor estava um casal muito jovem, os dois no mesmo beliche.

Mas não foi fácil. Primeiro, não podíamos fazer as camas todos ao mesmo tempo, porque não havia espaço para um, quanto mais para cinco. Depois, como não sabíamos onde encaixar as malas, tropeçámos por todo o lado. Toda a gente ao mesmo tempo a pedir ajuda para isto e para aquilo, o que não acontecia apenas no nosso compartimento. Em cada um dos outros compartimentos reinava a mais completa barafunda. A Cathy perdeu a mala dela e ninguém a achava. Era uma balbúrdia desgraçada. O senhor indiano, vendo-nos aos encontrões uns aos outros e sem nos conseguirmos orientar naquele minúsculo espaço, foi muito simpático e disse-nos como havíamos de arrumar as malas. Aí, as coisas melhoraram um pouco. Depois, deu-nos algumas dicas de como melhor fazer os beliches, mas era uma confusão. Cada uma gritava para seu lado. Uma queria isto, outra queria aquilo. Só se ouviam as nossas vozes num grande desatino. De repente, percebi que corria o risco de ficar no escuro e comecei a gritar que não podia ficar no escuro, porque me faltava o ar. Era o fim do mundo!... Nunca se vira uma tamanha bagunça. Também nunca nenhum de nós tinha passado por uma situação daquelas. O senhor indiano do beliche que estava por cima de mim ainda perguntou qual era a nossa nacionalidade. Respondi que éramos portugueses e depois ele deu as boas noites e voltou a dormir. Finalmente os guias também se acomodaram. O som foi baixando pouco a pouco. O agito foi diminuindo  pouco a pouco, também. A euforia baixando, para dar lugar à necessidade de descanso. E o comboio lá seguiu, com o característico som "pouca-terra, muita-terra... muita terra, pouca terra"...

Acordei de repente, com uma voz lá no fundo "sair... chegámos". Sair, sair"... - "Deus, que aconteceu? O que é que se passa? O que estou aqui a fazer?" - pensei. Estava feita num oito. Tinha dormido muito mal, com as vias respiratórias completamente apanhadas e dificuldade em respirar. Mas o sono era muito, pelo que passei a noite em conflito. De repente veio-me tudo à lembrança e percebi o que se estava a passar. Tínhamos que deixar o comboio tão depressa quanto possível. Era levantar, pegar na bagagem e sair. Ninguém queria lá ficar. Já não havia gente no comboio. Por onde se tinham evaporado? Inclusive, o indiano que estava no beliche por cima do meu, nem rasto dele. Saltei o mais depressa que pude, meio atónita. Naquele momento não queria saber de mais nada, nem pensar em nada, a não ser em sair dali. Tinha terminado a nossa aventura nos comboios da minha pátria amada. O nosso velho e querido autocarro, com ar condicionado fresquinho, estava à nossa espera. Assim que entrámos e nos acomodámos, logo começou a tourada. Tudo o que tinha ficado para trás, numa longa noite para a qual tinha sido necessária uma incalculável dose de paciência e de resistência a todos os níveis, já começava a dar lugar a mais um episódio divertidíssimo, cheio de humor e de risadas bem gostosas. Estávamos a salvo. Mais uma barreira que tínhamos ultrapassado. Só isso. Inconscientemente, já nos mentalizávamos e nos preparávamos para a próxima. Qual seria? Como seria? Só sabíamos que, de comboio, tínhamos a nossa conta e que um hotel de luxo com excelentes acomodações e uma bela piscina, num cenário paradisíaco, nos aguardava. Era o retorno à civilização.

Namasté!
 

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