Insólitos (3 Histórias)


(1)
Em Jaipur, à porta do restaurante onde fomos almoçar, estava uma mulher. Andava de um lado para o outro, esticando a mão para todo e qualquer um que passava, mas ninguém lhe ligava importância, ignorando-a, simplesmente. Eu não conseguia perceber que idade ela teria. Tanto podia ser nova como velha. Um calor abafado, um ar irrespirável, sufocante e ali andava ela, naquela luta de conseguir qualquer coisa que não chegava nunca.

Mas o pior não era isso. O pior é que, no outro braço, carregava uma criança recém-nascida, que também podia não ser. Podia até ter dois ou três meses, mas de tão definhada que estava, quem poderia saber!? Parecia uma boneca que até podia ser muito bonita, mas o seu aspeto maltratado, a pele manchada, o cabelo estragado e a roupinha tão pobre, quem olharia para ela? Rosto para cima, bracinhos e pernas abertos, abanando ao sabor dos movimentos da mulher, que andava numa roda viva, sem desistir.

E pior ainda, não havia sinal de vida naquela criança. Completamente inanimada, não se sentia sequer a respiração. Tanto podia estar a dormir como podia estar moribunda. Era um ser morto, que não tinha a menor reação. Devia estar desidratada, de tão exposta ao calor e ao sol.

E ela rodava de um lado para o outro, manifestamente numa enorme inquietação, desvairada, magríssima, seca, tal qual a criança, sem ter a menor atenção de parte alguma, completamente anónima, como se não existisse...

Assim é, a Índia que eu amo.




(2)
O autocarro parou no meio da estrada, por algum motivo de trânsito. Na berma do passeio, a uns trinta metros, havia uma família espalhada pelo chão: uns sentados, outros deitados. O que fariam àquela hora, no escuro da noite, sob a luz de um candeeiro? Primeiro, achei que talvez estivessem à espera de um transporte, o que poderia ser. Mas os autocarros passavam naquele sentido e eles continuavam lá. 

Observava em silêncio aquele quadro insólito, no intervalo do trânsito que passava, fazendo os possíveis por controlar a minha curiosidade e certa de que, entre eles, ninguém imaginaria que, naquele autocarro distante, alguém pudesse prestar-lhes a menor atenção que, no caso, seria eu, a fim de não correr o risco de ser incomodada, mais do que já estava.

A mulher mais nova, alta e magríssima, que chamou mais a minha atenção, pega na criança que trazia nos braços, levanta-se e sai a correr que nem uma louca, atravessando a estrada de qualquer maneira e perante a minha máxima consternação, vem na nossa direção. Ainda pensei que fosse atravessar para o outro lado, mas não. Vem na nossa direção e aproveitando a deixa do autocarro parado, pranta-se diante da minha janela, elevando a criança no ar, com as mãos, com uma cara esgazeada de todo e um ar de avidez completa e absoluta.

É verdade que eu estava a observá-la havia algum tempo. Mas era impensável que ela pudesse ter-se apercebido disso, pela discrição com que o fiz. O facto é que, sem saber como, ela captou. Os outros, provavelmente também viram o mesmo que eu ou não... mas foi a mim que ela se dirigiu, sem a menor hesitação. Não fiz qualquer comentário em voz alta. Não troquei uma sequer palavra com ninguém. A minha atitude era tanto de indignação, como silenciosa, o que fazia com que ninguém pudesse ter suspeitado fosse do que fosse. Porém, o desespero daquela criatura, com toda a sua avidez, captou, sonegou e violou o meu íntimo, entrando no meu pensamento, a ponto de me deixar completamente perplexa.

Agora, exibia a criança com todas as suas forças, bem junto da minha janela. O autocarro arrancou e mesmo assim os braços dela seguiram-no, arrastando a criança até onde lhe foi humanamente possível. Eu estava completamente aterrada e sem a menor reação. A vergonha dominava-me, deixando-me sem palavra.

Assim é, a Índia que eu amo.




(3)
Saímos do restaurante e dirigíamo-nos ao autocarro. A noite já tinha caído. Havia apenas a luz fraca de muito poucos candeeiros. Ao virar da esquina, uma mulher muito nova e escanzelada de magra, encontrava-se sentada no chão junto à parede. Vestia um sari invulgar, mas muito interessante, que deve ter custado uma nota preta a quem o comprou e quando o comprou, porque estava muito velho e estragado. Os braços cheios de pulseiras, bem como outros adornos pelo corpo, incluindo no cabelo. Os olhos esfumados de kajhal e muito carregados, afundavam-lhe ainda mais os olhos enormes e escuros, salientando a sua magreza de tal modo, que o olhar fixo e doentio e ao mesmo tempo indefinido, parecia perder-se no infinito, tornando-se irreal.

Os braços estendidos, com as mãos em concha à altura do peito, iam subindo lentamente, à medida da nossa passagem. As pernas cruzadas e à frente delas, uma criança recém-nascida, sem dúvida alguma, no chão, deitada de costas sobre um trapo rasgado, imundo e completamente nua. Mexia os bracinhos e as perninhas num movimento de completa exaustão, ao mesmo tempo que emitia um misto de gemido e choro, tão cansado, que mal se ouvia, como se estivesse a esgotar as suas últimas forças, dando os últimos sinais da sua tão pouca existência nesta vida.

Enquanto isto, ela mantinha firme o rosto, numa expressão fixa, de olhar esvaído, ausente e intemporal, mas impossível de ignorar, misturado com um brilho mórbido, onde se adivinhava uma vida devassa, feita de ocasiões constantes, a proporcionarem-lhe a sua sobrevivência, da qual, aquela criança não era, definitivamente, a primeira, nem seria a última vítima. Era apenas mais uma. Logo que aquela terminasse a sua missão nesta vida, outra se seguiria, concebida do mesmo jeito, numa qualquer esquina, com um qualquer estranho, num qualquer momento a que era reduzida a sua vida, bem como todos os que nela eram envolvidos.

O seu poder de sedução era uma tragédia verídica do seu universo kármico, que lhe enchia o bolso de rupias. Qual das duas precisava mais da outra? Qual das duas tinha um fardo mais pesado?!

Assim é, a Índia que eu amo.