terça-feira, 7 de dezembro de 2010

Varanasi 21-08-2010



























































































































A Cidade Sagrada

Varanasi, tão espiritualizada, tão desejada, tão amada!... Como era possível? As ruelas por onde passávamos eram tão estreitas que, para passar uma bicicleta, tínhamos que nos desviar, parar e encostar às paredes esburacadas e imundas. Não era tudo assim. Havia ruas largas, espaçosas, mas por todo o lado a mesma aparência do auge da miséria. Misericórdia!

Caminhávamos praticamente em fila indiana e a certa altura, peguei na pachmina, enrolando-a à volta do rosto, deixando só os olhos de fora. Havia tanto mosquito e tanta mosca, que temia que me entrassem pelo nariz e pela boca, mesmo fechada. O cheiro no ar era indescritível. Tudo aquilo era nojento. Varanasi, a cidade sagrada, não era diferente do resto da Índia. A diferença é que, para além do habitual, havia ainda as chamadas cerimónias religiosas na margem do ganges, para onde nos dirigíamos agora, com horas e horas de sono em atraso. 

O hotel era razoável. Não… era bom, muito bom, mesmo. No entanto, já tinha havido um probleminha que me chateou. Pouco depois de termos dado entrada e nos acomodarmos, voltei ao piso zero, mais precisamente à receção, para adquirir rupias. Tive que esperar um pouco porque estava a ser atendida uma das raparigas do grupo que, por acaso era indiana, não de naturalidade, mas de sangue. Logo que ela se retirou, o balcão ficou livre e aproximei-me do rececionista, um senhor que aparentava uns cinquenta anos, com um ar muito solene e que estava de olhos postos nuns papéis quaisquer, sem me dar a menor atenção. Esperei um pouco mais e como ele continuasse a ignorar-me, interrompi-o, fazendo-o perceber que estava à espera de ser atendida. Levantou um pouco a cabeça e com um ar superior e enjoado, perguntou-me o que queria. Disse-lhe que precisava de trocar dinheiro. Deu-me um papel que preenchi, devolvendo-lhe. Levou para trás do balcão, continuou a fazer ou a fingir que fazia não sei o quê, deixando-me a secar, sem uma palavra, nem uma explicação.

Com a outra tinha sido tão rápido, porque demorava tanto comigo? Algo não estava bem. Passado um pouco mais, resolvi perguntar porque estava a demorar. Olhou-me de lado e com toda aquela calma que tanto me irritava, respondeu-me que tinha que esperar, dando-me a entender que quem mandava era ele e tinha que me submeter à sua “vontade”. Não gostei. Era óbvio que estava a gozar com a minha cara. Então, vali-me do meu trunfo, se assim se pode dizer. Tirei do saco de mão o passaporte, abri e coloquei sobre o balcão, em frente aos olhos dele, que não entendeu o meu gesto, claro. E disse-lhe, com tom de poucos amigos e um pouco ameaçador: “O senhor atendeu a minha amiga com toda a rapidez e a mim está a dificultar as coisas porquê? É por causa da nacionalidade? Porque ela é indiana e eu não? Quem sabe não está enganado?!” 

Aí, ele levantou os olhos por cima dos óculos, mantendo a cabeça baixa, mas olhou para mim, ainda sem perceber onde eu queria chegar. “Sabe, as aparências enganam”, dizia-lhe eu, enquanto ele me olhava, não entendendo nada e talvez pensando “está a passar-se”. Então, a verdade que ele não esperava, veio ao de cima. E continuei: “Não é pelo facto de ela ter a sua côr que é indiana, porque ela - e marquei o “ela” - pode ter a aparência, mas, para sua informação, não é Indiana. Eu sim, apesar de não parecer, eu nasci na Índia, conforme pode ver.

Com ar de poucos amigos, mas já um tanto cauteloso, discretamente, dignou-se olhar para o passaporte e confirmando o que eu acabara de lhe dizer, virou-se, foi direito lá atrás do balcão, contou o dinheiro e voltou de imediato, pondo-o junto ao meu passaporte e com um ar completamente diferente, disse: “Minha senhora, o seu dinheiro”. Estava feito. Chateada que nem um peru, agradeci e subi aos meus aposentos, esbaforindo por todos os lados. Racistas dum raio, pensei comigo mesma.

Entretanto, no segundo dia, depois de virmos das cerimónias no ganges, com aquele folclore todo ao pôr-do-sol, estávamos exaustos e fomos diretos para o hotel. À chegada, tivemos uma super receção. Havia polícia por todo o lado. Em cada esquina um policial com uma espingarda ou metralhadora, sei lá, apontada à porta principal. Impressionava.

O que é isto(?), pensei comigo mesma. Bom, não fiz mal a ninguém, sou apenas uma turista, não tenho com que me preocupar. Resolvi ignorar, mas fomos revistados, apalpados e só acabou quando transpusemos a porta do hotel. Do lado de dentro ainda havia um polícia, mas a coisa era pacífica. Acabou. Subimos e fomos tomar um duche. Primeiro foi a Mina, minha companheira de quarto, depois eu. Enquanto ela estava na casa de banho, percebi que havia uma movimentação anormal e muito especialmente no quarto ao nosso lado, onde havia muita gente, porque eu os ouvia falar muito alto e a porta estava sempre a bater, porque entravam e saíam e não havia sossego. Era esquisito.

Entretanto, a Mina saiu da casa de banho e fui eu. Quando estava a meio do duche ouvi baterem à porta. Estranhei, mas não liguei, limitando-me a ficar atenta. A Mina era bastante surda, o suficiente para não ouvir. Bateram novamente, com mais força. Não gostei. Não era um bater amistoso, era um bater que adivinhava problema. Saltei do duche, enrolei-me no lençol de banho e espreitei pelo buraco da porta, que era enorme. Fiquei surpresa quando vi vários homens, sendo que um deles era um policial e ainda tinham um cão, um pastor alemão. O que é isto, pensei, o que quer esta gente? Rapidamente, pensei e agi.

Abri a porta, tal qual estava, enrolada na toalha. Mas abri só um pouquinho, escondendo-me atrás dela, não totalmente, para eles verem que estava no banho e com a testa franzida, de interrogação, perguntei: “O que querem, não posso atender, estou no banho”, fechando imediatamente a porta na cara deles. Silêncio. Durante uns segundos, nada se passou, ninguém falou. Eles não estavam à espera de ter uma receção daquelas. Deviam achar que intimidavam toda a gente. E depois de alguns segundos, bateram novamente, com mais força. Não atendi e fiquei à espera. Foi então que um deles falou em inglês, dizendo “abram, é a polícia”. Isso já eu sabia, mas também não me apetecia facilitar-lhes a vida e respondi-lhes que não estava vestida. Abra, repetiram eles. Bom, não podia abusar da situação e abri. Empurraram a porta, escancarando-a, dizendo-me para voltar para a casa de banho que ninguém nos faria mal. Assim fiz porque, verdade seja dita, não foram nada meigos.

Para a Mina, passou tudo ao lado. Quando os ouvi sair, saí da casa de banho e perguntei-lhe o que lhe tinham dito. Respondeu que não tinham trocado uma só palavra. Limitaram-se a passar um detetor de metais sobre toda a bagagem e saíram. Só isso? Sim, respondeu ela. São muito estúpidos, pensei, pois se houvesse alguma coisa, podia estar na casa de banho onde nem entraram!?

Mais tarde percebi qual era o problema. Era o mês do Ramadão e estavam muitos muçulmanos na Índia, o que para mim foi uma surpresa. Até já tínhamos visto uma manifestação, onde também havia polícias. Mas se eram muçulmanos, porque não iam para o Paquistão e deixavam os hindus em paz com as suas inúmeras crenças? Era mesmo querer confusão e nunca estarem satisfeitos com nada!? 

E ali estava eu, metida naquele filme, em andanças pela Índia. Nunca pensei… Varanasi, a cidade sagrada!... Era tudo menos sagrado. Era do mais profano que podia haver. Como é que podiam chamar-lhe a cidade sagrada!? Alguma vez o teria sido? Isso já não sei. Mas aquilo era um verdadeiro pesadelo, em todos os sentidos. Quando na tarde anterior fomos às lojas, eu estava no balcão, à espera que a menina me trouxesse o kajhal que lhe tinha pedido e não havia ar condicionado. Era um espaço enorme, um grande armazém e se o calor lá fora era infernal, lá dentro era insuportável. De tal ordem que eu não conseguia ter os olhos abertos, por causa do suor que me caía em bica sobre as pálpebras e tinha que estar constantemente a limpar a água para poder abrir os olhos. Até me sentia envergonhada. Dizia uma palavra e parava para limpar os olhos e a cena continuava. E o pior é que não via isso nelas. Estavam sequinhas, bonitinhas… parecia que não eram feitas da mesma matéria que eu.

As cerimónias do nascer e pôr-do-sol na cidade sagrada eram iguais todo o santo dia. Repetiam-se todos os dias. Mas era tudo como se fosse a primeira vez. É claro que tudo naquela terra é sagrado, tão sagrado que não tem explicação. É uma imundície por todo o lado, mas Varanasi, realmente, consegue superar. No rio, as pessoas fazem tudo, tudo o que se possa imaginar: cozinhar, comer, tomar banho, beber água, mijar, cagar, lavar roupa, orar, dormir tranquilamente em qualquer lugar ou em qualquer situação e todos fazem tudo o que querem sem ligar absolutamente nenhuma importância ao que se passa ao seu redor. Ninguém perturba ninguém. Enquanto uns deitam flores à água, outros fazem cremações dos seus mortos. Tudo ali acontece ao mesmo tempo. Quem tem parentes doentes, deficientes, exibe-os como se sentindo abençoados com aquele “presente” que consideram uma bênção. É de loucos. É difícil saber quem é mais louco que o outro. Contudo, os turistas ficam deliciados com aquilo. Acham tudo muito bonito, muito especial, muito santo. Deve ser por causa do povo que vive na rua porque, em vez de fazerem casas para as pessoas, invariavelmente fazem templos, um atrás do outro. Templos é o que realmente faz falta para preservar a tradição e o paganismo. E toda a gente acha aquilo lindo, carregado de um forte misticismo. Esquecem-se é da carga de energia negativa que é emanada para todo o planeta. Disso ninguém fala, ninguém tem a coragem de o dizer.

Mas Varanasi até é um nome bonito, sonante, leve, agradável… é a Índia e a Índia, com todos os seus defeitos, contradições, etc… é um grande mistério porque, na verdade, apesar dos horrores a que assistimos e da diversidade da sua cultura; por trás da hipocrisia, da verdade que se esconde, da inocência, da injustiça, da iniquidade, da desigualdade, das mil e uma doutrinas, do bem e do mal, da fome… Varasnasi, como toda a Índia, é ao mesmo tempo doce, pacífica, calma e tranquilidade. Um sonho confuso, um encontro insólito, um prazer amargo, uma experiência única num parque místico de diversões infinitas, onde o mistério impera a toda prova, sem a menor possibilidade de se esgotar, de se esfumar, porque é a Índia e porque não há nada igual.

 



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