Varanasi, tão espiritualizada, tão desejada, tão amada!... Como
era possível? As ruelas por onde passávamos eram tão estreitas que, para passar
uma bicicleta, tínhamos que nos desviar, parar e encostar às paredes
esburacadas e imundas. Não era tudo assim. Havia ruas largas, espaçosas, mas
por todo o lado a mesma aparência do auge da miséria. Misericórdia!
Caminhávamos praticamente em fila indiana e a certa altura, peguei
na pachmina,
enrolando-a à volta do rosto, deixando só os olhos de fora. Havia tanto
mosquito e tanta mosca, que temia que me entrassem pelo nariz e pela boca,
mesmo fechada. O cheiro no ar era indescritível. Tudo aquilo era nojento.
Varanasi, a cidade sagrada, não era diferente do resto da Índia. A diferença é
que, para além do habitual, havia ainda as chamadas cerimónias religiosas na
margem do ganges, para onde nos dirigíamos agora, com horas e horas de sono em
atraso.
O hotel era razoável. Não… era bom, muito bom, mesmo. No entanto,
já tinha havido um probleminha que me chateou. Pouco depois de termos dado
entrada e nos acomodarmos, voltei ao piso zero, mais precisamente à receção,
para adquirir rupias. Tive que esperar um pouco porque estava a ser atendida
uma das raparigas do grupo que, por acaso era indiana, não de naturalidade, mas
de sangue. Logo que ela se retirou, o balcão ficou livre e aproximei-me do
rececionista, um senhor que aparentava uns cinquenta anos, com um ar muito
solene e que estava de olhos postos nuns papéis quaisquer, sem me dar a menor
atenção. Esperei um pouco mais e como ele continuasse a ignorar-me,
interrompi-o, fazendo-o perceber que estava à espera de ser atendida. Levantou
um pouco a cabeça e com um ar superior e enjoado, perguntou-me o que queria.
Disse-lhe que precisava de trocar dinheiro. Deu-me um papel que preenchi,
devolvendo-lhe. Levou para trás do balcão, continuou a fazer ou a fingir que
fazia não sei o quê, deixando-me a secar, sem uma palavra, nem uma explicação.
Com a outra tinha sido tão rápido, porque demorava tanto comigo?
Algo não estava bem. Passado um pouco mais, resolvi perguntar porque estava a
demorar. Olhou-me de lado e com toda aquela calma que tanto me irritava,
respondeu-me que tinha que esperar, dando-me a entender que quem mandava era
ele e tinha que me submeter à sua “vontade”. Não gostei. Era óbvio que estava a
gozar com a minha cara. Então, vali-me do meu trunfo, se assim se pode dizer.
Tirei do saco de mão o passaporte, abri e coloquei sobre o balcão, em frente
aos olhos dele, que não entendeu o meu gesto, claro. E disse-lhe, com tom de
poucos amigos e um pouco ameaçador: “O senhor atendeu a minha amiga com toda a
rapidez e a mim está a dificultar as coisas porquê? É por causa da
nacionalidade? Porque ela é indiana e eu não? Quem sabe não está
enganado?!”
Aí, ele levantou os olhos por cima dos óculos, mantendo a cabeça
baixa, mas olhou para mim, ainda sem perceber onde eu queria chegar. “Sabe, as
aparências enganam”, dizia-lhe eu, enquanto ele me olhava, não entendendo nada
e talvez pensando “está a passar-se”. Então, a verdade que ele não esperava,
veio ao de cima. E continuei: “Não é pelo facto de ela ter a sua côr que é
indiana, porque ela - e marquei o “ela” - pode ter a aparência, mas, para sua
informação, não é Indiana. Eu sim, apesar de não parecer, eu nasci na Índia,
conforme pode ver.
Com ar de poucos amigos, mas já um tanto cauteloso, discretamente,
dignou-se olhar para o passaporte e confirmando o que eu acabara de lhe dizer,
virou-se, foi direito lá atrás do balcão, contou o dinheiro e voltou de
imediato, pondo-o junto ao meu passaporte e com um ar completamente diferente,
disse: “Minha senhora, o seu dinheiro”. Estava feito. Chateada que nem um peru,
agradeci e subi aos meus aposentos, esbaforindo por todos os lados. Racistas
dum raio, pensei comigo mesma.
Entretanto, no segundo dia, depois de virmos das cerimónias no
ganges, com aquele folclore todo ao pôr-do-sol, estávamos exaustos e fomos
diretos para o hotel. À chegada, tivemos uma super receção. Havia polícia por
todo o lado. Em cada esquina um policial com uma espingarda ou metralhadora,
sei lá, apontada à porta principal. Impressionava.
O que é isto(?), pensei comigo mesma. Bom, não fiz mal a ninguém,
sou apenas uma turista, não tenho com que me preocupar. Resolvi ignorar, mas
fomos revistados, apalpados e só acabou quando transpusemos a porta do hotel.
Do lado de dentro ainda havia um polícia, mas a coisa era pacífica. Acabou.
Subimos e fomos tomar um duche. Primeiro foi a Mina, minha companheira de
quarto, depois eu. Enquanto ela estava na casa de banho, percebi que havia uma
movimentação anormal e muito especialmente no quarto ao nosso lado, onde havia
muita gente, porque eu os ouvia falar muito alto e a porta estava sempre a
bater, porque entravam e saíam e não havia sossego. Era esquisito.
Entretanto, a Mina saiu da casa de banho e fui eu. Quando estava a
meio do duche ouvi baterem à porta. Estranhei, mas não liguei, limitando-me a
ficar atenta. A Mina era bastante surda, o suficiente para não ouvir. Bateram
novamente, com mais força. Não gostei. Não era um bater amistoso, era um bater
que adivinhava problema. Saltei do duche, enrolei-me no lençol de banho e
espreitei pelo buraco da porta, que era enorme. Fiquei surpresa quando vi
vários homens, sendo que um deles era um policial e ainda tinham um cão, um
pastor alemão. O que é isto, pensei, o que quer esta gente? Rapidamente, pensei
e agi.
Abri a porta, tal qual estava, enrolada na toalha. Mas abri só um
pouquinho, escondendo-me atrás dela, não totalmente, para eles verem que estava
no banho e com a testa franzida, de interrogação, perguntei: “O que querem, não
posso atender, estou no banho”, fechando imediatamente a porta na cara deles.
Silêncio. Durante uns segundos, nada se passou, ninguém falou. Eles não estavam
à espera de ter uma receção daquelas. Deviam achar que intimidavam toda a
gente. E depois de alguns segundos, bateram novamente, com mais força. Não
atendi e fiquei à espera. Foi então que um deles falou em inglês, dizendo
“abram, é a polícia”. Isso já eu sabia, mas também não me apetecia
facilitar-lhes a vida e respondi-lhes que não estava vestida. Abra, repetiram
eles. Bom, não podia abusar da situação e abri. Empurraram a porta,
escancarando-a, dizendo-me para voltar para a casa de banho que ninguém nos
faria mal. Assim fiz porque, verdade seja dita, não foram nada meigos.
Para a Mina, passou tudo ao lado. Quando os ouvi sair, saí da casa
de banho e perguntei-lhe o que lhe tinham dito. Respondeu que não tinham
trocado uma só palavra. Limitaram-se a passar um detetor de metais sobre toda a
bagagem e saíram. Só isso? Sim, respondeu ela. São muito estúpidos, pensei,
pois se houvesse alguma coisa, podia estar na casa de banho onde nem entraram!?
Mais tarde percebi qual era o problema. Era o mês do Ramadão e
estavam muitos muçulmanos na Índia, o que para mim foi uma surpresa. Até já
tínhamos visto uma manifestação, onde também havia polícias. Mas se eram
muçulmanos, porque não iam para o Paquistão e deixavam os hindus em paz com as
suas inúmeras crenças? Era mesmo querer confusão e nunca estarem satisfeitos
com nada!?
E ali estava eu, metida naquele filme, em andanças pela Índia.
Nunca pensei… Varanasi, a cidade sagrada!... Era tudo menos sagrado. Era do
mais profano que podia haver. Como é que podiam chamar-lhe a cidade sagrada!?
Alguma vez o teria sido? Isso já não sei. Mas aquilo era um verdadeiro
pesadelo, em todos os sentidos. Quando na tarde anterior fomos às lojas,
eu estava no balcão, à espera que a menina me trouxesse o kajhal que lhe tinha pedido e não
havia ar condicionado. Era um espaço enorme, um grande armazém e se o calor lá
fora era infernal, lá dentro era insuportável. De tal ordem que eu não
conseguia ter os olhos abertos, por causa do suor que me caía em bica sobre as
pálpebras e tinha que estar constantemente a limpar a água para poder abrir os
olhos. Até me sentia envergonhada. Dizia uma palavra e parava para limpar os
olhos e a cena continuava. E o pior é que não via isso nelas. Estavam
sequinhas, bonitinhas… parecia que não eram feitas da mesma matéria que eu.
As cerimónias do nascer e pôr-do-sol na cidade sagrada eram iguais
todo o santo dia. Repetiam-se todos os dias. Mas era tudo como se fosse a
primeira vez. É claro que tudo naquela terra é sagrado, tão sagrado que não tem
explicação. É uma imundície por todo o lado, mas Varanasi, realmente, consegue
superar. No rio, as pessoas fazem tudo, tudo o que se possa imaginar: cozinhar,
comer, tomar banho, beber água, mijar, cagar, lavar roupa, orar, dormir
tranquilamente em qualquer lugar ou em qualquer situação e todos fazem tudo o
que querem sem ligar absolutamente nenhuma importância ao que se passa ao seu
redor. Ninguém perturba ninguém. Enquanto uns deitam flores à água, outros
fazem cremações dos seus mortos. Tudo ali acontece ao mesmo tempo. Quem tem
parentes doentes, deficientes, exibe-os como se sentindo abençoados com aquele
“presente” que consideram uma bênção. É de loucos. É difícil saber quem é mais
louco que o outro. Contudo, os turistas ficam deliciados com aquilo. Acham tudo
muito bonito, muito especial, muito santo. Deve ser por causa do povo que vive
na rua porque, em vez de fazerem casas para as pessoas, invariavelmente fazem
templos, um atrás do outro. Templos é o que realmente faz falta para preservar
a tradição e o paganismo. E toda a gente acha aquilo lindo, carregado de um
forte misticismo. Esquecem-se é da carga de energia negativa que é emanada para
todo o planeta. Disso ninguém fala, ninguém tem a coragem de o dizer.
Mas Varanasi até é um nome bonito, sonante, leve, agradável… é a
Índia e a Índia, com todos os seus defeitos, contradições, etc… é um grande
mistério porque, na verdade, apesar dos horrores a que assistimos e da
diversidade da sua cultura; por trás da hipocrisia, da verdade que se esconde, da
inocência, da injustiça, da iniquidade, da desigualdade, das mil e uma
doutrinas, do bem e do mal, da fome… Varasnasi, como toda a Índia, é ao mesmo
tempo doce, pacífica, calma e tranquilidade. Um sonho confuso, um encontro
insólito, um prazer amargo, uma experiência única num parque místico de
diversões infinitas, onde o mistério impera a toda prova, sem a menor
possibilidade de se esgotar, de se esfumar, porque é a Índia e porque não há
nada igual.
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