Na escola, o Director muito compenetrado do seu papel, com um ar seriíssimo, proferia um discurso de agradecimento por tudo o que lhe fazíamos chegar: material escolar e alimentos de longa duração para as crianças, mas tinha começado a falar e nunca mais se calava com tantos agradecimentos, dando a impressão de que nunca se calaria.
Vim até cá fora porque estava farta e porque o calor sufocava e lá
dentro não estava melhor. Pelo menos não teria que ouvir o patético discurso.
Havia muitas crianças à porta da escola e perguntei-lhes se não queriam entrar.
Abanaram a cabeça em sinal negativo, permanecendo calados, parados e quietos.
Quietos demais para o meu gosto.
Sentei-me num degrau e secretamente comecei a indagar. Algo estava
no ar, preso, sem poder sair. Como que uma conspiração. Algo estava por se
manifestar, porque as crianças tinham estampado no rosto um sorriso desolado,
um sorriso triste, se é que isso existe. E foi esse sorriso triste que chamou a
minha atenção e fez com que começasse a falar com eles e em poucos minutos
estava rodeada de criaturas de tenra idade, que desabafavam comigo as suas
amarguras. É que, aqueles que estavam cá fora, não pertenciam à escola. Eram de
uma outra, ali ao lado e sentiam-se muito injustiçados pela ajuda que dávamos
àquela escola, sendo que eles também precisavam e nada nem ninguém os
ajudava.
O que senti naquele preciso momento foi uma coisa indescritível. O
ar deles, tão inofensivos, tão desolados… não há palavras que descrevam todas
as emoções do ser humano e o que pode parecer uma coisa banal, sem importância,
é precisamente o contrário. Doeu tanto olhar todos aqueles rostinhos, que de
alguma forma manifestavam injustiça e outras coisas mais!… Doeu em mim, tocou
no meu coração com tanta força que, enquanto os ouvia, segurava com todas as
forças da minha alma as lágrimas que teimavam em saltar descontroladamente e
que eu não podia consentir de maneira nenhuma, pois bastaria ceder numa só e
jorraria um mar delas sem tamanho. As crianças não mereciam isso. As crianças
precisavam de apoio, de uma explicação razoável, de um pedido de desculpas e de
muito, mas muito amor. Mas ainda assim e bem mais do que tudo o resto,
precisavam de ser alimentadas, porque esse era o seu maior problema.
Rapidamente, lembrei-me que tinha uns pacotes de bolachas, para
fazer face a uma necessidade súbita. A Índia é a Índia e não tem como explicar
todos os imprevistos que a qualquer momento podem surgir. Tirei os pacotes das
bolachas, abri e comecei a distribuir pelas crianças que, calma e
disciplinadamente, estendiam as mãozinhas para aceitar umas míseras duas, três
bolachas, que calhou a cada um e enquanto iam comendo, sem arredarem pé dali,
olhava para eles e prometia-lhes que no próximo ano a escola deles teria o
mesmo tratamento, para que não se sentissem tão diminuídos. Entretanto,
apareceu a Helena, que me chamava a “Madre Teresa de Calcutá”. Segundo ela,
onde havia crianças, sempre estariam à minha volta e apercebendo-se do que se
estava a passar, tirou do saco dela uns chocolates e rebuçados que também
distribuiu.
O sonho é qualquer coisa que nos acompanha desde a mais tenra
idade. Os sonhos formam-se no nosso inconsciente, começam a crescer, a tomar
forma, até se materializarem ou não. Não sei se aquelas crianças tinham sonhos,
nem que tipo de sonhos teriam. Mas sei que tinham esse direito. Só que, muito
provavelmente, na maioria dos casos, para não ser muito pessimista, jamais se
concretizarão. A limitação a que estão sujeitos é algo incompreensível e porque
não, inaceitável!?
Quando eu era criança tinha um sonho. Um sonho que cresceu comigo
a vida inteira e que eu tinha consciência de que, por variadíssimas razões,
quase com toda a certeza nunca se concretizaria. Mas estava enganada. Aos
cinquenta e seis anos de idade, surpreendentemente e inesperadamente, esse
sonho concretizou-se de um modo absolutamente fantástico e foi um presente e
tanto que a vida me deu. Assim, um dia eu estava em Agra, diante de um dos mais
belos monumentos, de entre tantos em todo o mundo, mais exatamente na Índia. Eu
estava em Agra, diante do Taj Mahal, uma das sete maravilhas do mundo.
Quem diria que um dia eu ia deixar de sonhar para ser uma realidade?!
E nesse dia pude chegar perto e tocar-lhe. As minhas mãos deliciavam-se ao
passá-las por todas aquelas pedras preciosas, tão bela e artisticamente
esculpidas e talhadas na própria pedra, cada uma com sua cor tão suave quanto
natural. Era o Taj Mahal, mas era muito mais do que isso, era o meu sonho de
criança e de toda uma vida, ali materializado naquele preciso e único momento.
Tanto que eu tinha sonhado e desejado aquela realidade, sem achar que algum dia
realmente fosse possível! No entanto, ali estava ele diante dos meus olhos,
diante do meu presente, sob as minhas mãos, que pareciam não acreditar no que
estavam a tocar.
Mas ao mesmo tempo, enquanto lhe tocava, achava que por tudo isso,
por tudo o que ele representava, devia sentir alguma coisa diferente, alguma
sensação extraordinária, notável, qualquer coisa de mais transcendente, que na
realidade não aconteceu. A realização do sonho era quase uma frustração, o que
não deixa de ser uma utopia. Mas ele tinha sido realizado e tinha alimentado o meu
espírito durante toda a vida e nem por isso poderia ser desvalorizado. Para
todos os outros que andavam por ali admirando, observando e tirando fotos como
eu, talvez não tivesse o mesmo impacto que teve para mim. Talvez para eles não
fosse um sonho. Não estava escrito na testa de ninguém, nem na minha, o que
aquilo representava para cada um. Tudo estava igual. Eu, igual a mim mesma.
Apenas o sonho tinha deixado de ser um sonho, porque o puzzle tinha fechado.
Mas tinha fechado porque um dia teve o seu início.
Já no regresso a Portugal, no aeroporto de Bombaim à espera do
embarque, onde encontrei um jovem indiano que ia para Itália ter com a esposa
que era italiana e com quem falei durante algum tempo em que ele me fez imensas
perguntas, como que fazendo uma avaliação da minha viagem à Índia, curioso,
quis saber o que, em quinze dias de viagem pela índia, tinha sido o meu ponto
máximo e que mais me teria fascinado.
E foi aí que me surpreendi a mim mesma, porquanto aquela pergunta
deveria ter exigido da minha pessoa uma resposta bastante bem pensada, bem
reflectida. Em vez disso, sem precisar de pensar em nada, a resposta saiu
prontinha, sem a mais pequena hesitação. Mais do que tudo, na Índia, de todas
as belezas visíveis e invisíveis, mais do que todos os templos que vimos e dos
que não vimos, até mesmo do Taj Mahal, as crianças foram sem dúvida alguma, a
minha grande paixão, o meu verdadeiro fascínio e isso nunca esquecerei. Estou
certa de que ele também não.
Da mesma maneira que eu tinha um sonho, ele também tinha o dele,
do qual ia atrás, até que outros sonhos tomassem o lugar daqueles que se vão
realizando ou não, mesmo que esfumados e diluídos na ilusão. A vida é composta
de sonho, mas a ilusão também é ou pode ser um sonho. Sonhos que passam do
sonho à realidade ou da realidade que se manifesta ou se apresenta através do
sonho. Não há limites nem barreiras e nem fronteiras. É a própria sobrevivência
que está em causa, porque quando paramos de sonhar, algo da nossa essência
morre também.
No caso daquelas crianças, como ultrapassam os seus limites,
sobrevivendo, e falo da fome, sem precisar de falar de mais nada, porque é mais
do que suficiente, sinceramente não sei.
Talvez apenas e somente permitindo-se o direito de sonhar,
mantendo o sonho forte, crescendo na ilusão e vivendo submersos num permanente
mar de emoções... porque é o que é. É a Índia!
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