"Para mais tarde recordar" (7 Histórias)


(1) Momentum

O guia tentava reunir um grupo de treze, mais propriamente, dez mulheres e três homens. Para além do trânsito na Índia já de si caótico, eram seis horas da tarde, o que só piorava a situação.

A confusão era total. Todos juntos, aguardávamos uma brecha que não havia e nem ia haver nunca. Do outro lado estavam dois polícias, que podíamos ver através do trânsito, quando havia um fortuito intervalo. Na rotunda, estava a acontecer uma manifestação de muçulmanos, que empunhavam grandes cartazes e falavam de sua justiça: era o mês do ramadão.

Ouviam-se os barulhos e ruídos todos ao mesmo tempo. As buzinas permanentes dos inúmeros veículos que faziam questão de passar todos ao mesmo tempo e que, apesar de avançarem a passo de tartaruga, não nos davam passagem. Se um abrandava, dois ou três apareciam, obrigando-nos a recuar. Se dois ou três abrandavam, seis ou sete surgiam e lá vinha tudo para trás. Um horror! Parecia que estávamos perante uma "missão impossível".

Foi então que uma das raparigas do grupo decidiu criar uma palavra de ordem, quase mágica, que funcionou às mil maravilhas e todas juntinhas, dando as mãos, com os braços levantados no ar e em coro, gritávamos "momentum," mo-men-tum, ritmado, repetindo a cada passo que dávamos. Aí o trânsito parou. 

Mas não foi só o trânsito que parou. Os polícias que estavam do outro lado com os cacetes na mão, prontos para atuar em caso de algum distúrbio causado pela manifestação dos muçulmanos, vendo o trânsito ceder à passagem de uma onda de mulheres europeias e ouvindo o coro, repetindo sempre a mesma palavra que não entendiam, ficaram estupefactos, sem perceber nada do que se estava a passar e temi que, à conta daquela charada, corrêssemos o risco de levar umas bordoadas, caso eles achassem que se tratava de algum agito de mau gosto.

É claro que não tínhamos nada que ver com os outros - os manifestantes muçulmanos -, até porque eles próprios pararam e por instantes tudo parou mesmo, ouvindo-se somente as nossas vozes e as nossas figuras avançando por ali. Ao mesmo tempo, vendo a sensação que estávamos a causar, riamos, riamos, sem nos controlarmos.

É que, depois de um dia cheio de emoções pelas ruas e lojas de Delhi, foi na verdade mais um acontecimento super hilariante que ficou nas nossas memórias, com um carinho muito especial... "para mais tarde recordar"...



(2) Índia Gate

Início de tarde. A Índia Gate apinhada de gente, de tal modo, que nos perdíamos uns dos outros com toda a facilidade. Era a maior confusão. Tínhamos que andar de nariz no ar, caso contrário, evaporávamo-nos.

Naquela imensa extensão de relvado muito verde, porque estávamos na época das monções, havia de tudo: jogos, brincadeiras, corridas, vendedores de gelado e de outras guloseimas; gente de todas as idades e de todos os credos; balões e papagaios eram postos no ar; mães de todas as idades, que passeavam com crianças de todos os tamanhos; outros que tiravam fotos individuais ou em grupo, enfim... imensa gente e como era de esperar, as nossas máquinas começaram a trabalhar.

Fotos para aqui, fotos para ali, enquanto ríamos e brincávamos uns com os outros e até já falávamos com os indianos, enquanto eles também se juntavam à nossa alegria e à nossa festa. Alguns, quiseram mesmo ficar connosco nas fotos. Enfim, estava no ar um clima agradável e de grande descontração.

No meio desta confusão, há um jovem indiano todo aprumadinho, que está de máquina, a tentar tirar uma foto, enquanto fazia sinais com uma mão. Ora abanava a mão para a direita, ora abanava para a esquerda, dando sinal a alguém para se chegar especificamente para um lado. Mas a verdade, é que não estávamos a entender o que ele queria.

Primeiro, pensámos que queria o grupo todo. Depois, achámos que não era o grupo todo, pelo que saíram os homens, que também não eram muitos. Mas ele continuava sem ter aquilo que pretendia. Parava, dava um passo para desviar quem, indevidamente, se metia na frente e continuava a focar e a tentar separar, mas não percebíamos a quem e atirávamos palpites ao ar. Entretanto, passava muita gente pelo meio e começou a estabelecer-se a maior confusão e o rapaz a ficar muito nervoso.

Fomos saindo do grupo, uma por uma, até que a Mina ficou sozinha. E mais uma vez ele apontou a máquina, enquanto fazia sinal com uma mão para ninguém se meter. O Carlos gritou, "vá Mina, é à Mina que ele quer tirar uma foto!" A Mina correu e saiu de cena, dizendo que não lhe agradava nada aquilo e que não gostava de ser fotografada.

Quando ela correu, o rapaz irritou-se outra vez e nós continuávamos a insistir com ela para o deixar tirar a foto, mas ela, que também já estava irritada, gritou que não queria. Não entendia para que é que ele insistia em tirar-lhe uma foto e gesticulava como uma criança teimosa que não quer fazer o que lhe mandam, mas com imensa graça e nós todos divertidíssimos com a situação, porque, o que parecia, é que o rapaz tinha simpatizado com ela, que tinha idade para ser mãe dele.

Foi então que, tendo esgotado a paciência com todos nós, sem perceber porque insistíamos em ter sempre alguém do grupo a interpor-se, gritou qualquer coisa, sacudiu a Mina para o lado, focou a câmara e do outro lado, para nosso grande espanto e consternação, surge um grupo de quatro rapazinhos, muito juntinhos, com as caras encostadas uns aos outros, parecendo umas meninas, sorrindo e fazendo poses enquanto, finalmente, livre de todos os inoportunos, disparava a sua tão desejada e difícil foto.

E nós ficámos todos de boca aberta, pensando "então era isso"!? Era isso! Boa! Mais uma "para mais tarde recordar"...



(3) Leitura das mãos

Na entrada do museu das armas, um indiano sentado numa antiquíssima secretária, rodeado de livros sobre quiromância, chamou a minha atenção. Decidi rejeitar a exposição, visto não estar especialmente interessada em ver armas e em vez disso, quis que ele me fizesse uma leitura, que seria mais interessante.

O Carlos que também não quis ir à exposição porque já a tinha visto muitas vezes, disse que ficava comigo a assistir. Como achei que não ia ser fácil, pedi ao guia indiano para ficar ali, servindo de intérprete, no caso de eu não entender.

Perguntei-lhe quanto era e ele respondeu que eram quinhentas rupias. Quinhentas rupias para eles é muito, mas para nós não é significativo, sendo o equivalente a cinco euros. Em todo o caso, achei muito, mas ainda assim valia a pena e o Carlos insistiu, para ver o que saía dali e porque calculava que ia ser divertido.

Então, o sujeito pegou nas minhas mãos e começou por perguntar a minha idade. Logo aí começou a "festa". Fiz-me indignada e disse-lhe que isso era ele que tinha que me dizer. Mais indignado ficou ele, que olhou para mim espantado, dizendo que precisava de saber a minha idade. Impasse. Eu olhava para ele e ele olhava para mim. Eu dizia-lhe que era ele que tinha que saber isso e ele dizia que eu é que tinha que lhe dizer.

Bom, acabei cedendo e as coisas continuaram. Ele traçava o meu perfil e a minha personalidade, com alguma dificuldade minha em entendê-lo, ao que o guia indiano dava uma ajudinha. Ao fim de algum tempo o Carlos dizia que aquilo até ele dizia. Mas o que nós queríamos era brincadeira, claro.

Em dada altura, ele joga um dado importante e acerta em cheio dizendo que, aos trinta e seis anos eu tinha tido um acontecimento que alterara a minha vida para melhor, ao que eu pensei "touché". Se, por acaso ou não, não o sabia. Mas era verdade, pelo que confirmei, esperando que ele desenvolvesse o assunto. É claro que isso não aconteceu e ele ficou a olhar para mim, à espera que  lhe dissesse o que tinha acontecido.

Novamente indignada, olhei para ele, perguntando-lhe "outra vez? É o senhor quem tem que me dizer o que aconteceu. Não tem que me fazer perguntas!" O Carlos ria e dizia "vá lá, não sejas chata, diz lá ao homem o que ele quer saber" e eu continuava a olhar para ele dizendo-lhe que tinha pago quinhentas rupias para lhe contar a história da minha vida, o que não fazia sentido.

O homem tentava impor um ar de seriedade a tudo aquilo. Estava claro que era ele que estava a ler as minhas mãos. Ele falava com o guia indiano muito apressado para eu não entender e novamente ficava calado à espera, sem saber o que fazer. E novamente o Carlos insistia "vá, diz lá, que queremos saber".

Bem, lembrei-me novamente de que, a intenção era reinação, brincadeira e lá disse. O meu divórcio. O homem entendeu mas ainda assim, voltou a perguntar e eu voltei a responder: o meu divórcio. Ele calou-se, ficou com um ar paradão e depois falou com o guia indiano, não sei o quê.

O guia indiano virou-se para mim e disse que ele se referia a um acontecimento bom, que mudara a minha vida para melhor, ao que voltei a repetir: o divórcio. O Carlos ria baixinho para não abandalhar mais a situação e eu continuava a enfrentar o indiano que simplesmente estava consternado.

O caso é que, para ele, por uma questão meramente cultural, mulher alguma podia ficar melhor depois de um divórcio. Jamais! E na altura nem pensei nisso. Mas como também não tinha interesse em mentir, continuava a tentar explicar-me para que ele entendesse o meu ponto de vista. Em vão, porque ele estava cada vez mais consternado. Estávamos os dois já muito exaltados, quando eu pensei que o melhor seria dar por terminada a sessão.

Então, disse-lhe "agora sou eu que vou ler as suas mãos e você paga-me as quinhentas rupias que me levou"!... O homem estava muito atarantado. O Carlos ria, deliciado com toda a situação, o que me fez cair em mim e ver o lado divertido da situação e então ríamos que nem uns parvos, enquanto eu pensava com os meus botões: ok, mais uma "para mais tarde recordar"...



(4) Totó

Caminhávamos em direção a um templo na cidade budista. Havia gente por todo o lado. Uns pediam comida, outros pediam dinheiro, outros tentavam vender alguma coisa e outros simplesmente existiam, naquela existência mórbida e passiva.

Enquanto caminhávamos, já ao redor do templo, um grupo de adolescentes invadiu o nosso grupo com perguntas e mais perguntas, muito curiosos acerca das nossas origens. O certo é que se foram entrosando e para todos os lados que íamos, nos acompanhavam. Como não eram inconvenientes, pelo contrário, eram muito educadinhos e eram crianças, deixámo-los andar.

Queriam saber de onde vínhamos e outras coisas acerca de nós e ao mesmo tempo que nos acompanhavam iam fazendo papel de guias, explicando isto e aquilo, contando coisas sobre o sítio onde estávamos e falando generalizadamente sobre a Índia. Perguntavam-nos o nome e iam-nos dizendo o nome deles.

Entre mim e a Mina havia um que se chamava Tótó, ou pelo menos esse foi o nome que ele nos deu. Achámos imensa graça ao nome e o facto é que, passado pouco tempo, já estávamos familiarizados, conversando com os garotos com todo o à vontade. Mas achámos mesmo muita piada ao Tótó, que queria que a Mina lhe comprasse uma coisa qualquer que ele vendia, só que não tínhamos levado dinheiro e para não fazermos desfeita, dissemos que no dia seguinte voltaríamos ali. 

O garoto que dava pelo nome de Totó, insistia com a Mina para ela não se esquecer dele e foi-nos seguindo, repetindo sempre a mesma ladainha e a Mina sempre dizendo que sim, que no dia seguinte voltaria, mesmo porque não tinha alternativa, pois já assim ele não nos largava.

No dia seguinte, lá voltámos nós, conforme tinha sido combinado, porque estava previsto no programa de viagem. Assim que entrámos no recinto, um grupo de garotos começou a correr rapidamente na nossa direção, ouvindo-se a voz de um que gritava: "Mina, I'm Totó". Logo de seguida, vindo de outro lado, outro sobrepunha-se, gritando o mesmo: "Mina, I'm Totó" e o grupo que, aparentemente poderiam ser uns oito, dez, ou mais, foram, uns atrás dos outros, repetindo, cada um com mais convicção do que o outro, sempre o mesmo: "Mina, eu sou o Totó", até chegarem junto de nós, rodeando-nos mas, especialmente, num tremendo ataque à Mina, que não a largavam "eu sou o Totó", eu sou o Totó...

Enfim, eram imensos os Totós e nós ríamos tanto, tanto, com aquela loucura e aquele inocente assédio deles, todos assumindo ser o Totó em volta da Mina, do tamanho deles e toda baralhada, sem saber o que fazer à vida para se livrar daquela avalanche de garotada... foi um delírio completo.

Dias depois ainda ríamos que nem umas perdidas à custa do Totó que, com aquela brincadeira nos tinha trazido um riso tão gostoso e que, mais uma vez seria, com toda a certeza, "para mais tarde recordar"...



(5) Nos elefantes

Íamos em direção aos elefantes que nos levariam ao cimo do Forte Amber. Um garotinho mais ou menos de uns oito anos, meio franzino, veio atrás de nós querendo que lhe comprássemos coisas. Naquela confusão de irmos para os elefantes, não sei se alguém lhe comprou alguma coisa. Sei que todos passaram adiante e eu fiquei para trás, com ele à minha volta a torrar a minha paciência.

Andava de um lado para o outro e metia-se na minha frente, impedindo-me de andar mais depressa. De início não lhe dei atenção. Depois, comecei por lhe dizer que não queria nada, que se fosse embora. Mas ele não desistia de jeito nenhum e eu já estava incomodada com tanta persistência. De tanto se meter à minha frente, acabei tendo que o encarar, dizendo-lhe frontalmente que não queria e que precisava de correr para apanhar os outros.

Mas ele estava-se nas tintas. Nem me ouvia. O que ele queria mesmo era que eu comprasse alguma coisa. Finalmente, começou a desfilar a mercadoria pelos meus olhos e quanto mais eu lhe dizia que não queria, mais ele persistia e mais se empenhava em me atrapalhar e implorar para lhe comprar algo, porque tinha que levar dinheiro para dar ao pai.

Aquela cantilena já começou a mexer demais comigo e fui obrigada a ver as canetas decoradas de espelhinhos e todas coloridas, enfeitadas de pedrinhas multicores; os espelhinhos de bolso redondos, igualmente decorados com pedrinhas e vidrinhos partidos e tudo em embalagens de seis cada, pelo que só vendia embalagens completas.

Para o fazer desistir, dizia-lhe que apenas comprava uma caneta, um espelho e por aí fora. Ele ficava muito chateado, quase a chorar e dizia que não, que não podia ser, que tinha que ser o pacote inteiro. E tudo isto eu ia fazendo para me livrar dele, tentando que desistisse porque, na verdade, não tinha interesse em carregar comigo nada daquilo.

Ele era muito engraçado e tinha um rostinho muito bem desenhado, na sua cor moreno tisnado do sol e o cabelo curto muito liso e preto, era uma graça e no fundo eu tinha que concordar que era de uma força impressionante, de uma energia e determinação incrível, com aquela tão tenra idade, ainda mais com a noção de que tinha que levar dinheiro para casa. Aí é que a coisa começava a doer de verdade.

E eu já não o via como uma ameaça ou um importuno. Dentro de mim a ternura começava a ganhar espaço e aquela criança que eu não sabia de quem era, era sem dúvida do mundo e podia ser minha?! Então comecei a sentir que, de certa forma, alguma responsabilidade eu tinha  sobre ele. Dado que é impossível saber a quem cabe a "culpa" da fome no mundo, da pobreza, etc... quem pode garantir que também eu não terei a minha quota parte de culpa ou responsabilidade!?

Finalmente e dado que todos temos algo de materialistas e bem lá no fundo sempre se acha que o dinheiro "compra"... "cala"... enfim, resolvi dar-lhe dinheiro. Mas quem disse que ele o queria? Ele queria, sim, mas em troca da mercadoria. Não queria favores. Ele precisava de chegar a casa e entregar ao pai rupias do trabalho de ambos, portanto, devidamente merecidas. Que burra fui! E custava alguma coisa comprar o que o garoto queria?

Sentia-me muito mal e para desfazer aquela coisa toda, comecei a brincar com ele. Ele queria que eu comprasse seis e eu dizia-lhe "um" (ek), em hindy. Até aí, só tínhamos falado em inglês. Ele olhava para mim com muita atenção, a pensar se teria ouvido bem e continuava carregando no seis, enquanto eu passava do um (ek) para o "dois" (dô). E ele voltava a olhar para mim com os olhos muito abertos, mas continuava a repetir seis e eu ia aos três. Aí, ele já não tinha dúvidas. Eu estava a falar hindy.

Começou por esboçar um sorriso e eu, atenta às reações dele, voltava atrás: um (ek), dois (dô) - fixando-o no olhar e mostrando os dedos, para que ele me acompanhasse - três e ele repetia; quatro e ele já estava em sintonia comigo; cinco e ele estava a achar imensa graça e já tinha esquecido as canetas e os espelhos e saltava o lancil aos pulinhos, alternando de pé; seis e o nosso ritmo estava em perfeita sintonia; sete e ao mesmo tempo saltava e ria, na expectativa de que eu não soubesse mais e fosse obrigada a parar; oito e ele ria, aumentando a expectativa, e nove.

E aos dez ele interrompeu e perguntou muito intrigado, com uma expressão engraçadíssima: "como é que sabes falar hindy?" Então baixei-me e falei-lhe junto ao ouvido: "porque sou indiana". Todo o seu rosto se abriu num sorriso delicioso, encantado com aquela inesperada surpresa.

Como poderia eu ser indiana, com a minha pele branca e sardenta e os cabelos cor de fogo? Mas nem por um instante ele duvidava do que eu lhe dizia. Estava deslumbrado. A alegria dele era uma festa para mim. Mas a festa quase acabara porque, rapidamente se lembrou de que, o que ele precisava mesmo era vender para ter dinheiro. Essa era a sua missão. E fez novamente uma cara feia, implorando para eu comprar.

Voltei novamente à brincadeira e mais uma vez ele, criança que era, se esqueceu e foi levado por arrasto: um (ek), dois (dô), três e ouviam-se as nossas vozes em coro, quatro, cinco, seis... até dez e ele pensava que eu ia parar por aí mas, como lhe fiz sinal para continuar, continuou em simultâneo: onze, doze e a cada número que dizíamos ele pulava mais alto e sorria com uma alegria que me enchia a alma, acabando eu por vibrar como ele e me esquecer da idade, para ficar igual a ele e assim, com grande espanto dele, que estava sempre à espera que eu parasse, continuámos até vinte, com as nossas vozes em coro já bastante elevadas e ele feliz da vida porque eu sabia muito mais do que ele alguma vez podia supor. E como ele já ria, feliz e contente!... 

Aí, passou por mim alguém apressado que disse "temos que ir de jeep, porque a fila para os elefantes é enorme e nunca mais saímos daqui, com este sol abrasador!"...

Baixei-me ao nível dele, pedi-lhe as embalagens das canetas, bem como as dos espelhos, dei-lhe o dinheiro que ele queria e mais qualquer coisa. Guardei no saco, passei a mão pela cabecinha dele, dei-lhe um beijo e fui correndo para o jeep, que me libertaria um pouco do calor.

Ele ficou acenando com a sua mãozinha morena, muito contente e eu olhando para trás, guardando na alma cada lágrima que não conseguia controlar e que não sei quantas foram: uma (ek), duas (dô) três... com muito amor e carinho, "para mais tarde recordar"...



(6) A moeda

Os pés grandes lá estavam, com algumas moedas em cima. E por todo o lado elas caiam, até com mais facilidade do que no centro. O lago era redondo e cercado por um cordão de ferro para não ser transposto e a água cobria toda a superfície da planta dos pés, em relevo e lisa, bem desenhada e com os dedos muito bem recortados.

Toda a gente se aproximava para deitar uma moeda, qualquer que fosse e tentar acertar nos pés. Não sei porquê, mas a maioria caiam fora, indo parar ao fundo do lago que tinha muito pouca altura. Algumas iam para aos pés, mas ficavam-se pelos bordos, sem conseguirem atingir o centro. Deitavam e seguiam o seu caminho, sem comentários ou manifestações. Parecia um ritual.

De repente, houve uma brecha e aproveitei para meter o nariz e assistir às moedas a serem jogadas. Era tão fácil acertar como falhar. Cada vez que alguém jogava uma, toda a gente esperava para ver o resultado. Discretamente, tirei uma moeda e esperei. Todos os olhares seguiram o meu movimento e senti-me observada. Mas era mesmo assim, pois acontecia igual com todos. 

Fui na onda e atirei, com vista a incidir na zona mais central da planta dos pés. Bingo, a moeda foi certeira, caindo bem no centro. Respirei aliviada, mas não sabia a repercussão que aquela brincadeira teria. Ouvi o Carlos - o Carlos foi o organizador desta viagem -, "boa, Luisa!" E mais uma vez, pensei "mas não é nada difícil?" E enquanto admirava o posicionamento da minha moeda, toda a gente em volta estava parada a olhar para mim, mas de um modo que chamou a minha atenção. 

Era um olhar estranho, meio enlevado. Parecia que aquilo era mesmo importante! Então, o guia indiano explicou que só acertavam as pessoas protegidas ou abençoadas pela divindade, a deusa representada pelos pés. Se eu tinha acertado é porque era uma pessoa especial. A deusa tinha-me concedido esse privilégio. Eu era especial, não era uma pessoa qualquer!?

Por momentos o meu ego ficou meio transtornado, no bom sentido. Mas logo aterrei, para me lembrar de que estava na terra da espiritualidade por excelência.

De qualquer modo eu não iria esquecer aquele momento, talvez patético, talvez não... o que importa é que os deuses conspiravam a meu favor e eu não esqueceria aquele momento que, mais uma vez seria, com toda a certeza, "para mais tarde recordar"...


(7) O Dalai Lama

Água, água, arroz, lamaçal... homens, mulheres e crianças... todos metidos naquela confusão. E aquilo tudo passava como se fosse apenas um filme, não uma realidade. Por fim, chegámos. Os jipes pararam e nós saímos.

Estávamos no interior da grande Índia, Ragjir, na base de um terreno montanhoso. Preparávamo-nos para visitar mais um templo budista, ao cimo de uma enorme subida. Quando olhei, não me pareceu tão difícil, mas quando a subida começou, parecia que não tinha fim e por mais passos que desse, era como se estivesse sempre no mesmo sítio. Olhava para trás, para me certificar do que já tinha percorrido e era verdade. A estrada alcatroada e esburacada desenhava-se por trás de mim. Mas quando olhava em frente, o cimo nunca mais chegava.

Eu tinha começado a tomar uns comprimidos para regularem a tensão arterial alta e isso atrapalhava imenso as minhas caminhadas. O fôlego não era o mesmo. O guia indiano local, percebendo a minha dificuldade, veio ter comigo. Parei e ele parou na minha frente, à distância de um metro. Não dizia nada, apenas mostrava um sorriso francamente generoso e autêntico. Então, deu-me a mão e começou a puxar por mim, para me aliviar. Mas ele puxava tanto que a certa altura disse-lhe que era melhor deixar-me sozinha e ele foi à frente. Rapidamente se distanciou de mim para ver os outros, enquanto continuei na minha dura subida. 

Passaram crianças de várias idades e mulheres jovens com crianças de colo. Para além do ar envelhecido que cedo adquirem, não me pareceram propriamente cansadas pela subida. Mais ou menos a meio ou talvez um pouco mais de meio, parei e voltei a olhar para trás. Só me apetecia descer e regressar ao jipe. Nem a água me aliviava. O calor já era insuportável, com aquele esforço, pior um pouco. Mas não tinha ido até ali para desistir. Rapidamente, pensei na minha casa, no meu conforto, no meu sossego, etc, etc, etc... mas agora estava ali e tinha que ir para a frente.

De repente, vejo vir na minha direção um garoto entre treze a quinze anos. Na mão, tinha um bastão de madeira. Calmamente, chega perto de mim e sem uma palavra e sem me olhar de frente, coloca o bastão na minha mão. Eu não queria acreditar naquele gesto tão... doce, é a palavra certa. Agradeci-lhe e disse-lhe que na volta lho devolveria. Nem uma palavra. Apenas o olhar baixo. E com a ajuda do bastão lá fui, menos penosa.

Olho para cima e vejo o meu bom guia, de pé, com um ar gracioso e todo fresco, pronto para caminhadas daquelas sem fim. Faz-me sinal com a mão para desviar o caminho pela lateral esquerda. Seguindo a indicação dele, de facto, percebi que havia um desvio que não teria notado se não fosse a deixa dele. E insistia para eu seguir por ali. Então, percebi que havia uns degraus talhados na pedra, que encurtavam razoavelmente a subida, o que me deixou feliz da vida e me fez renovar as forças. E num instante lá estava eu, no último degrau, sã e salva, onde ele me recebeu com um grande abraço e com aquele sorriso bonito, franco e feliz.

Comecei a ver a vista lá de cima, que era espetacular. Tirei umas fotos enquanto apreciava a paisagem e aproveitava para normalizar a respiração. Apareceu o Carlos e disse que partíssemos à descoberta das celas dos monges. Cada uma por si, vamos ver quem entra na cela do Dalai Lama. Do Dalai Lama(?!), pensei... uau... fui sempre uma grande simpatizante do Dalai Lama. Tenho livros dele e sempre estive atenta ao que se passava com ele e à volta dele. Era para mim um enorme privilégio pensar que estava num templo que era frequentemente visitado pelo Dalai Lama na Índia. Era mesmo algo especial.

E enquanto as outras seguiram em várias direções, na tentativa de encontrar a respetiva cela, eu continuei ali parada a tentar sentir a energia daquele lugar, pensando que já tinha valido a pena todo aquele esforço. E bastava-me o facto de estar num lugar que era frequentado pelo Dalai Lama.

Nestes pensamentos, apontei uma direção e lá fui eu. Eis que me aparece uma cela. Ok, é mesmo nesta que vou entrar. Tinha um aspeto tão humilde, tão simplório que me pus a imaginar como seria o monge budista daquela cela. Só mesmo entrando.

Era um quartinho pequeno, com uma cama e pouco mais. Mas na parede lá estava o quadro com a foto que eu tão bem conhecia, o Dalai Lama, ele mesmo. Portanto, aquela era a cela dele e era eu que a tinha encontrado. Mal podia acreditar. Parecia que ele estava ali, porta aberta, à minha espera, convidando-me a entrar.

Eu estava nos aposentos da entidade espiritual máxima do Tibete. Era uma sensação e tanto. No meu íntimo eu só agradecia, agradecia e interiorizava aquele bem estar que, para mim, era uma coisa inacreditável. É verdade que podia ter sido um ou uma qualquer de nós. Mas fui eu que lá entrei.

Quando nos encontrámos de novo no pátio exterior central, o Carlos perguntou: "então quem é que encontrou a cela do Dalai Lama"? E eu respondi: "eu". Ele olhou para mim, sorriu um sorriso enorme e exclamou "Luisinha!..." Na verdade eu estava feliz.

No regresso, na descida a que todos os santos ajudaram, as caras eram outras. O cansaço fora-se. Mais ou menos no mesmo sítio, lá estava o garoto do bastão. Ele não veio ter comigo. Ficou de cabeça baixa, braços cruzados, dando pequenos pontapés nas pedras do alcatrão. Afinal ele tinha-me entregue o bastão sem uma só palavra. Nada dizia que era apenas um empréstimo. Mas eu sabia que não. Por isso fui ao seu encontro, caso contrário ele jamais viria de novo ao meu encontro. A sua dignidade não lho permitiria. Tirei uma nota de cem rupias, porque há atitudes que não têm preço e dei-lhe. Mas sabia que ele não estava à espera de dinheiro, por isso não resisti a passar a mão na cabeça dele, num gesto de apreço. E sempre com toda a dignidade e compostura e diria mais, humildade, aceitou de volta o bastão.

Ficou com a nota na mão a pensar silenciosamente, porque tudo nele era silencioso. As palavras, os gestos, os pensamentos... silencioso, mas de uma enorme grandeza, que chegava a ser invejável.

Os jipes regressavam à cidade num final de tarde de uma luminosidade incrível. A paisagem tinha tanto de bonita como de feia. Não sei mesmo qual das duas coisas pesava mais, tal era o seu equilíbrio. É difícil de gerir uma coisa assim. É o feitiço e o mistério da Índia. 

E os jipes, só mesmo jipes para passarem por todo aquele lamaçal, lá iam mostrando a desgraça ou a beleza daqueles lugares. Essa é sempre a minha dúvida. Nunca sei onde começa uma e acaba outra e vice-versa. Mas elas coexistem, isso é certo. Através das janelas, tudo ficava para trás. Só o pôr do sol nos acompanhava, enquanto lentamente se desvanecia.

Lá estavam as mulheres metidas na água, com os saris a colorir a paisagem. Saris lindos, de cores únicas, cores que nunca se repetem, sempre novas, sempre diferentes, sempre reinventando-se. As crianças felizes, na sua esplendorosa e dolorosa inocência, que brincam trabalhando ou que trabalhando brincam, também nunca sei..., na água, fora da água, enquanto eu, confortavelmente instalada, vou passando o olhar novamente por aquela película viva, que nenhuma câmara pode reproduzir com a mesma fidelidade, nem captar o que enche a alma, banhada pela luz do pôr do sol, também ele inocente, distante e silencioso, como a água... os arrozais, o arroz, arroz, água, arroz, terra, água... água... água... paisagem indiana, "para mais tarde recordar"...